Anormal – por Rosana Serena
Ela sentia sempre essa leve sensação de ser diferente dos outros!…
Olhava a distância os pares enamorados, e se flagrava pensando que elo seria aquele que jamais ela havia experimentado!…
Ao seu derredor a algazarra de crianças em torno de seus pais zelosos, a fazia sentir que ela havia perdido alguma coisa!…
O vai e vem de pessoas aceleradas e ansiosas, a fazia pensar para onde iriam com tanta certeza do caminho e da direção, grupos sorridentes de amigos a faziam sentir que estava fora da roda da vida!…
Neons de lojas reluzentes e piscantes a faziam sentir que não pertencia ao mundo da moda!…
Sentada, bebendo sozinha seu chocolate na grande área de lazer de um grande shopping, lia seu livro e pensava como era estranha a tudo isso, ou, como tudo isso era estranho a ela!…
Não se sentia pertencer a esse mundo de alegria e movimento e recorria a uma saída, entrando nas redes sociais. O impacto era enorme, pois ali todos tão felizes e realizados a faziam sentir-se anormal.
Garota de colégio de freiras tinha uma rigorosa noção de regras de bom comportamento, mas, sobretudo uma noção do que era a normalidade. E o normal era sentir a plenitude espiritual.
Houvera sido educada para ser normal!…
Seguira todos os preceitos da moral e dos bons costumes, vigentes à seu tempo, no entanto sempre se sentira anormal. Fizesse o que fizesse não se sentia encaixada em seu próprio conceito.
Havia momentos como esse que a sensação crônica se agudizava e ela desejava fugir de si mesma. Tomava seu chocolate, e lendo procurava no seu escrito, a si mesma.
Esse mundo brilhante para ela é uma criação de um ideal de ilusão, vivia por isso retirada em seu mundo de quietude e introspecção onde sentia-se a salvo e segura, mas desconfortavelmente sentia-se anormal, porque o normal era ser feliz, por ser vibrante em sintonia plena coma as vibrações da vida. De fato sua orquestração era outra!…
A balizagem humana é ser feliz e alcançar a felicidade afastando-se do sofrimento pela regência do princípio do prazer. No entanto, o homem defronta-se com três principais fontes de sofrimento, a saber, a natureza, a biologia e seu semelhante. Não temos domínio sobre a natureza e a biologia, leis maiores as quais estamos subjugados pela própria condição humana. O semelhante que deveria ser nosso suporte de enfrentamento destes limites é a maioria das vezes a principal fonte de sofrimento, pois como diz Freud em Mal-Estar da Civilização.
“Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo podem defender-se quando atacados; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos devem-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade”
(Freud, S (1927)- Mal-Estar na Civilização, v. XXI , Imago, p.133).
Para estabilizar essa relação de semelhantes surge a civilização como forma de regrar, tais relações a fim de que não prevaleça à lei do mais forte, entretanto, esta, a civilização passa a ser uma fonte de sofrimento. Via de regra a exigência é que cada um abra mão da satisfação de seus próprios instintos, o sexual e de agressividade que precisam ser inibidos para a manutenção da sociedade e sua ordem.
Pelas próprias características da pulsão (instinto), de pressão constante, fonte interna e objeto intercambiável e o seu fim de buscar a realização, tais forças não são extinguíveis ou anuláveis.
A tentativa de satisfação pulsional poderá ser executada pelos mais diferentes recursos possibilitados por suas próprias características, pode-se modificar, por exemplo, o objeto, ou o seu fim.
À pressão constante a busca de satisfação pode ser feita pela sublimação dos instintos inibidos através de atividades culturais e ou científicas, cujo fim estará desviado, mas permitindo dessa forma ao sujeito uma possibilidade de satisfação, bem como a sociedade uma aceitável e bem vista realização. Mais adiante Freud afirma que:
“Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo”
(Freud, S (1927)- Mal-Estar na Civilização, v. XXI, Imago, p.103).
Freud afirma que há um programa do aparelho psíquico em busca da felicidade, dirigido pelo princípio do prazer, mas adverte:
“Não há possibilidade alguma de ele ser executado; todas as normas do universo são-lhe contrárias.”
(Freud, S (1927)- Mal-Estar na Civilização, v. XXI, Imago, p.103).
Contudo em nosso propósito de vida devemos nos esforçar pra realizar o melhor possível o nosso próprio projeto de vida, e podemos seguir alguns caminhos chamados nesse trabalho de “métodos de fuga do desprazer”, tais como:
a) Pelo isolamento voluntário para fugir do outro como fonte de sofrimento.
b) Pelo isolamento do mundo externo como forma de fugir do mundo como fonte de sofrimento.
c) Por métodos de influência de organismo, tais como a utilização de químicos lícitos ou ilícitos para modificar a sensação de sofrimento.
d) Pelo agir sobre a pulsão, procurando dominar as fontes internas de nossas necessidades, pelo seu aniquilamento, através de práticas que permitem a felicidade da quietude.
e) Pela sublimação, ou seja, a reorientação de objetivas intelectuais para o trabalho artístico, intelectual e ou científico.
f) Pela distinção do vínculo com a realidade que causa sofrimento através da criação de fantasias e ilusões.
g) Pelo remodelamento da realidade, tal como faz o eremita, o paranóico e o fanático religioso.
h) Pelo amor que nos liga ao objeto amado e traz a satisfação de amar e ser amado.
i) Pela fruição da beleza encontrada na arte, na natureza, nos gestos humanos, do conhecimento científico e etc.
Essa escolha do caminho de se afastar do sofrimento ou de buscar ser feliz será afetado pelos mais diferentes fatores, que irão desde as condições externas para seguir o caminho decidido, até a força interna que o homem terá a sua disposição a fim de realizá-lo. Ressaltará ainda o referido autor que:
“Nisso, sua constituição psíquica desempenhará um papel decisivo, independente das circunstâncias externas”.
(Freud, S (1927)- Mal-Estar na Civilização, v. XXI, Imago, p.103).
Afirmando assim que cada um, a partir do que é constituído psiquicamente buscará a direção e poderá trilhar, ou não, o caminho que decidiu. Exemplifica nos informando que “o homem erótico dará preferência a seus relacionamentos emocionais”;” o narcisista buscará suas satisfações principais em seus processos mentais internos”; “o homem de ação nunca abandonará o mundo externo”.
Freud nos previne que:
“Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades, apresenta-se-nos como a método mais tentador de conduzir nossas vidas, isso, porém significa colocar o gozo antes da cautela, acarretando logo o seu próprio castigo”.
(Freud, S (1927)- Mal-Estar na Civilização, v. XXI, Imago, p.96).
Em Além- Do Princípio Do Prazer, ele afirma:
“Existe realmente na mente uma compulsão a repetição que sobrepuja o princípio do prazer”
(Freud, S (1920-1922)- Além do Princípio do Prazer), v. XVIII, Imago, p.36.
Freud, neste trabalho nos anuncia não sem uma certa perplexidade um fenômeno da vida psíquica, a compulsão a repetição, evidenciado na clínica e que se mostrará sempre como indiferente ao princípio do prazer. Revelará tal fenômeno pertencer à realidade pulsional, obstando ao homem a busca de seu próprio bem.
No centro dessa questão e como eixo de seu trabalho aparecerá claramente o par pulsional pulsão de morte e pulsão de vida, onde a compulsão a repetição aparecerá como a magnitude da pulsão de morte, e que em seu livre curso em direção ao seu alvo só poderá ser barrada pela pulsão de vida.
Mais além, e independentes do princípio do prazer estão todas as manifestações de satisfação mórbida cujo caráter é enigmático para o próprio sujeito. Ou seja, além desse, limiar está o que se pode chamar de gozo, que tem uma relação ambígua com o prazer e a dor. Em Além Do Princípio Do Prazer, Freud afirma que impressões dolorosas podem ser a fonte de um gozo intenso, ou seja, a dor e desprazer podem ser uma fonte de satisfação em si mesmo.
“Ao longo de sua obra Freud mostra como são complexas as relações entre satisfação (Befriedigeng) e o prazer (Lust) e outras sensações que o excedem em força e intensidade. São os prazeres extremos, a alegria intensa, o júbilo, o êxtase ou a volúpia, para os quais ele usa em geral o termo “Genuss” (traduzido como gozo), mais do que Lust (prazer) e sublima seu caráter de excesso em relação ao princípio do prazer, cuja barreira é atravessada nesses casos. Essas manifestações podem ser sentidas como dolorosas, indo até a repulsa, ou asco ou o horror, na medida em que o sujeito não consegue destacar-se delas. Sem dúvida alguma há na elaboração da pulsão de morte, uma abordagem do gozo que Freud não conceitua, mas cujo campo ele denuncia, traçado à fronteira que o situa mais além do prazer. E isso que constituirá o ponto de partida de Lacan para definir o gozo.”
Valas, P – As Dimensões do Gozo, Jorge Zahar editor, 1988, Rio de Janeiro, p.25.
Não iremos adiante na conceituação de Lacan sobre o gozo que se faz ao longo de sua obra, sendo inclusive o conceito, um critério utilizado para uma divisão do ensino de Lacan. Faremos um recorte direto para o objeto de nossa análise a partir da leitura que Lacan faz da sociedade capitalista condicionada por um modo de gozo ligado ao consumismo onde o sujeito procurará sua completude pela aquisição de objetos.
A regra de ouro da civilização surgirá como um imperativo de amarmos ao próximo, renunciando nossa própria satisfação pulsional a fim de garantir a continuidade da própria civilização. Em nossa sociedade atual, entretanto parece estar contida o imperativo de um gozo pleno e absoluto uma vez que nos exige e condena a felicidade plena, demonstrada em todas as propagandas que vendem a imagem perfeita, de famílias perfeitas e consumidoras dos produtos que são mostrados como os capazes de suprimir a carência humana. Os relacionamentos virtuais que são uma fuga dos conflitos inerentes ao homem, e que estão contidos em toda relação, criam a ilusão de afetos perfeitos desprovidos da natural hostilidade humana, e para tanto, devem ser mantidos a uma distância segura de um computador.
Há um excesso no mundo atual, excesso desvairado, excesso que só poderá ser traduzido como gozo…
Excesso de prazer prometido em excesso de festas bombásticas, e de esportes alucinantes!…
Excesso de exercícios para formar corpos esculturais!…
Excesso de dietas para atingir a saúde perfeita!…
Excesso de movimentos de ir e vir extasiantes, fotografados e postados em mídias sociais, de excessivos números de acesso em tais publicações!…
Excesso esfuziante da moda ditatorial, cujo alinhamento é uma exigência!…
Excesso de informações inassimiláveis pela quantidade, mas que prometem um saber definitivo!…
Excesso que nos leva a crer que estamos sempre perdendo algo de alguma coisa, nos lugares onde todos estão, à exceção de nós mesmos!
Excesso de luz, alegria, brilho e felicidade, mas então é bom lembrar que todo excesso é por definição gozo, e que todo gozo traz uma complicação para o sujeito que nele se perde de si mesmo.
E para bem dizer o faz Lacan:
“Aquele que triunfou e conquistou o gozo torna-se completamente idiota, incapaz de outra coisa que não seja gozar, enquanto aquele que dele foi privado guarda toda sua humanidade”.
Lacan, J. Seminário 3, As Psicoses, Jorge Zahar editor, 1988, Rio de Janeiro, p.51
Não há um padrão de busca de felicidade, cada um terá que descobrir o seu caminho e contentar-se com o que é possível para si, segundo sua possibilidade constitutiva. Há uma possibilidade limitada de ser feliz e para cada um será de uma forma e de uma intensidade diferente. A felicidade do sujeito não poderá ser vigente a partir do imperativo de gozo da sociedade, sob pena de abolir o sujeito. Tal caminho só poderá de fato ser encontrado no caminho oposto do gozo, que é o do desejo.
No meio do burburinho da vida no shopping, apaziguada, a anormal, após essa leitura fechou as páginas do livro, e abriu em sua vida uma nova compreensão de si mesma. Levantou-se e seguiu o seu caminho em direção ao seu próprio desejo, cujo trilhamento será único e exclusivamente o dela.
Não tinha a obrigação de ser feliz ao modo vigente!
Sentiu-se em paz!
E a anormal mais normal e inteligente que eu conheço! Prbs.
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