O que ele não me dá! – por Rosana Serena
Ouço seu discurso repetido pela milésima vez! As enxurradas de recriminações, infamantes correm como hemorragia verbal. Rio que corre caudalosamente sempre no mesmo lugar, arrastando a frágil embarcação de seu casamento em confronto de impacto físico com as bordas ribeirinhas. Na emborcação da pequena nau ela mesma se afoga!…
Reclamatória incisivamente e repetidamente encadeada em qualquer tema. Seu mal-estar se faz sentir no amplo de sua vida corpórea, psíquica e social. Vive com intensas dores físicas mal localizadas. Raivosa, vive irritada com todos os quem destrata gratuitamente. Desorganiza-se na administração de sua vida profissional. A indicação causal aponta para sempre o mesmo responsável, o parceiro. Ele, que nada lhe dá e quando e se o faz são sempre inutilidades imprestáveis!
De qualquer fato corriqueiro que se comente lá está ele, o queixume sobre o parceiro, incluído na conversa como aquele que falhou, ou não atendeu a situação, permitindo que se tornasse para ela um problema. Não há como desviá-la dessa certeza!
O dinheiro não é suficiente porque ele não tem capacidade para ganhar! Os recursos materiais são poucos porque ele não tem capacidade de prover a família como deveria! O filho é um peso porque ele não compartilha a responsabilidade da educação! Ela vive doente, pois se desgasta nos papéis de mãe, dona de casa e profissional, pois ele não lhe dá condições de ficar aliviada de qualquer uma dessas atribuições! Falta-lhe o que ele não lhe dá!
Saindo da exacerbação emocional de nossa personagem, à qual soma-se a particularidade de sua estrutura, e indo à contemporaneidade de um tempo onde a gritaria invocante é geral, quase em uníssono podemos ouvir as desqualificações do masculino da espécie como aquele que não dá o que a mulher precisa! Aquele que não dá, porque não quer, mesmo podendo fazê-lo! Aquele que não dá ou se o dá é insuficiente ou muito mal feito, muito de pé quebrado, uma inutilidade!
Será sempre nesta fala um apontamento específico, não para uma impossibilidade humana, senão, sempre prontamente localizada na incapacidade masculina, de dar para uma mulher o que ela precisa. Haverá nesse discurso sempre uma preservação da fêmea da espécie como a parte desiludida.
Ressoam-me como eco, centenas de outras vozes femininas que escuto desde sempre que refletem a mesma questão, com mais ou menos intensidade. Desiludidas, em grupo se associam numa recriminação infindável, aos homens do seu círculo de realidade, enaltecendo e esperando o ideal que pertence a um imaginário impossível, sem que disso elas tenham a menor notícia.
Pontuação bem cadenciada, vozes somadas e conclamadas, dirigidas ao descrédito dos possíveis parceiros, todos estes perdidos pela ação e enunciação deste discurso. Apontamento acusatório da falência da potência masculina, do dever masculino de ofertar à mulher, o que lhe deveria ser graciosa e gratuitamente ofertado. Homem na equivalência da impotência total!
Lacan define: “A castração é o signo do drama do Édipo, como também dela é ele o pivô implícito” e alude que nela se trata sempre de um “objeto imaginário”, ou seja, o fato da castração ser “ uma falta imaginária do objeto.”
LACAN, J., “A relação de objeto – Livro IV“,Jorge Jahar editor ,Rio de Janeiro,1995, pag. 221 e 37
Vejamos como isso se opera: em jogo, uma falta de objeto como tema central, em torno de um objeto cuja função é privilegiada, o falo. Este objeto é imaginário, sendo há um tempo o significante de uma falta, bem como e ao mesmo tempo o objeto que poderia obturar essa falta.
Mas o que é o falo? Basicamente um objeto mítico. É importante assinalar que surge no curso da relação do infans com a mãe. Para o bebê, cuja dependência devido a sua imaturidade biológica dos cuidados é total, a ausência materna é desastrosa e ameaçadora.
A criança atribuirá essas ausências a uma outra coisa que a priva da mãe, o fato que ela atribuirá ao pai. Nesse momento ela constrói um objeto mítico ou ilusório, uma mãe sempre presente e inteiramente à sua disposição, é uma construção mítica que receberá o estatuto de falo .
Lacan refere que as três formas da falta de objeto se apresentam como frustração, privação e castração:
– Na frustração o dano é imaginário para a criança que se faz o falo da mãe a fim de garantir a oferta dada a ela, de seus próprios objetos de satisfação. Nessa dialética da mãe-criança-falo, esta, a criança, sofrerá pelo agente que é a própria mãe devido a sua ausência, um dano imaginário, e este objeto que falta, terá o estatuto de real.
– Na privação de objeto, esta, será agenciada por um pai imaginário que será identificado pela criança como aquele que a privará de ser o falo. Na medida em que esse pai intervém a criança terá acesso à simbolização e o objeto terá o estatuto de simbólico.
– Na castração haverá um pai real como agente que colocará a criança sob o estatuto da lei do desejo na medida em que o objeto ganha o estatuto de imaginário.
“O complexo de castração retoma no plano puramente imaginário tudo aquilo que está em jogo com o falo” , que será exatamente a assunção de uma falta ao nível simbólico. Será preciso uma operação de não sê-lo, para poder tê-lo, diferenciadamente para a menina e ao menino.
Sobretudo, a castração que incidirá sempre sobre o falo imaginário, promoverá o acesso do sujeito ao nível simbólico do seu próprio desejo como falta-a-ser, e o falo como o objeto faltante.
A castração não se refere a um órgão, no entanto aparecerá para o menino como medo de perda e para a menina como o que ela perdeu, o órgão aqui é o que suporta como forma, o falo. Ou seja, refere-se este complexo a uma estrutura própria da constituição do sujeito entanto tal.
Seria então correto afirmar que a relação de ambos os sexos é com o objeto imaginário que poderia tamponar a sua falta-a-ser.
Diz Lacan: “No extremo do amor, no amor mais idealizado, o que é buscado na mulher é o que falta a ela. O que é buscado, para além dela, é o objeto central de toda a economia libidinal: o falo”
LACAN, J., “A relação de objeto – Livro IV“,Jorge Jahar editor ,Rio de Janeiro,1995, pag. 111
De outro lado podemos retomar a velha questão freudiana do que quer uma mulher? Sabemos que uma mulher quer ser amada por um homem e desejada por ele, mas haverá também para ela, um mais além onde ela procurará, o falo como o objeto faltante.
“Não há relação sexual”, aforismo lacaniano que quer dizer que, posto que cada um relaciona-se com o falo, ou mais bem à dizer, com a busca de algo que tape o buraco de sua própria falta. Surgirá o amor como suplência, em um encontro que será sempre faltoso e no qual cada um dará ao outro, o que não tem para dar nem sequer para si mesmo.
Nossa bela adormecida deverá acordar de seu sono encantado alienante, para reencontrar o príncipe tornado sapo, por ser aquele que nada lhe dá. Pobre homem condenado a tal fardo!
Alguém precisa dizer a ela que o possível para o humano são as trocas de suas próprias carências e não é o outro o responsável por sua fratura, mas a sua própria condição humana o é! De qualquer modo nessa busca incessante ela estará sempre sozinha, porque não haverá quem possa corresponder ao que ela supõe que um outro tem para lhe dar.
Solidão a que se condenará na medida em que não pode fazer essa re-significação!
Só me falta dinheiro !!!!!!!!