Traços – por Rosana Serena

Em estupor ela pergunta a si mesma:

_ O que deu errado?

_ O que responderia por isso?

_ Quando e como isso aconteceu com ela?…

Sua jovem filha estava despedaçada no turbilhão de uma angústia avassaladora. Entre os sinais, um excesso de zelo com o corpo esbelto, levado-a a beira de uma grave anorexia. O mais gritante, no entanto, era a sensação de estar definitivamente perdida que ela anunciava claramente à mãe; “que não sabia quem era”, “ onde estava” ou “para onde iria”.

Sua trajetória de jovem bem sucedida havia se paralisado no tempo, assim como ela, que se encontrava estancada em um ponto de parada no possível brilhante caminho que havia iniciado muito jovem, e que lhe apontava a direção do sucesso, supostamente em uma trajetória definitiva e sem paradas.

Sua independência de jovem que havia morado fora do país por um longo tempo estava desfeita; não era capaz de dar mais um passo sem as mãos seguras da mãe.

Sua alegria havia sido levada pelo maremoto emocional em que se sentia afogar ao sabor das grandes ondas assustadoras.

Sua beleza morena e exuberante havia se desmanchado em uma figura magra, frágil e abatida.

Sua capacidade de relacionar-se havia se dissipado e os amigos haviam corrido em revoada, tal como passarinhos de arribação que são os jovens. Estava terrivelmente só e isolada de si mesma não fosse pela mão materna a lhe amparar.

A mãe, no entanto, outrora tão orgulhosa do seu acerto na vida, que era o de ter preparado a filha tão bem para um feliz destino na vida, siderada e obcecadamente repetia a si mesma, a mesma questão de diferentes formas: O que havia dado errado?…

O que havia dado errado?… O que havia dado errado?…Repetia monocordicamente anunciando sua dor ao ver a filha se desfazendo em inconsistências. Onde estava para si mesma, o concretismo da certeza do que ela havia julgado, ser a filha tão solidamente “inteirinha”? A solidez de suas certezas maternas desmantelava-se como prédios que ruíam a mercê das forças da natureza. Nada mais era credível, suas crenças se desfaziam junto com a filha em inconsistências.

 Filha única, por circunstâncias da vida havia se tornado a única de uma segunda geração e nela foram projetados todos os ideais narcísicos de seu entorno familiar. A única para eles, ela o fora! E no dito familiar parecia-lhes assim tão consistentemente inteira!

A única! Única filha, única neta, única sobrinha, única herdeira, única sucessora, único senso de continuidade familiar de uma saga. A única a carregar o peso de todas as idealizações de uma plêiade que lhe fazia a corte e lhe escravizava em tal posição.

Tal modo outorgada, chegou a receber em vida plena dos seus, todos os bens lhe posto no nome, em nome do perigo do risco de terceiros a entrarem na família e expropriarem-se-lhes os bens. Foi ela que foi viver na propriedade mais valiosa da família cercada de um séquito de serviçais. E foi supostamente em nome dela que o pai divorciado da mãe, separou da nova companheira. Sentiu-se inteira, inteiramente vestida com todos os ideais narcísicos dos seus.

 Foi ela, de fato, quem sucumbiu ao peso de todas essas supostas honrarias, no momento em que a vida de algum modo lhe mostrou que tudo isso não é real! Por que o real é bem outra coisa, e nos aponta sempre para a singularidade das coisas, onde não há o único, a unicidade ou o inteiro.

A voz de sua mãe em lamento ressoa em minha mente como pedido de socorro:

 _ Onde errei?… Onde errei?… Onde errei?…Já neste momento colocando sobre si como peso, ser causa e causadora!

Vozes outras se fazem concretas em minhas palavras!

No primeiro momento de estruturação do sujeito, a criança por razão da prematuridade neurofisiológica fará a apreensão de si mesma, numa unidade reconhecida a partir da imagem do outro, seu semelhante.

A visão do corpo inteiro no espelho despertará manifestações de júbilo na criança, que ato imediato procurará o olhar do adulto “A” [1] (Outro) para encontrar nele a confirmação do que vê no espelho, e esta é a inauguração do “Eu ideal”, é o estágio do espelho, que é uma construção no eixo imaginário, e é uma identificação imaginária que e é constituinte e alienante do sujeito. Lacan teorizou em 1936, o Estádio do Espelho, teoria que estabelece e localiza na imagem o papel fundador da constituição do eu, e na matriz simbólica do sujeito.

Surgirá o Outro “A” na sua dimensão de alteridade, e linguagem que inserirá o sujeito na lei dos significantes. É um acesso ao simbólico e que inaugurará para o sujeito e seu “Ideal do Eu” que é uma identificação simbólica, pois está ligada aos significantes deste Outro “A”, considerado como o tesouro dos significantes.

Será necessária uma passagem a mais por Lacan, para um início de nossa compreensão. Voo que nos leva a uma parada em 1960, à sua formulação última do Grafo do Desejo (Lacan -1960), um artifício para nos apresentar a subjetividade humana em sua dimensão constitutiva, aos registros do imaginário, simbólico e real, que se apresenta graficamente dessa forma.

Para o entendimento do grafo completo se fazem necessárias cortes didáticos aqui brevemente apresentados e sem a pretensão de explicá-lo, apenas de anunciá-lo como possibilidade de compreensão do humano.

 1)      Grafo 1:

A entrada do sujeito na lei do significante

O grafo mostra dois pontos de interseção, desde onde o significante para de ser deslizamento desvairado, e se torna fundamento inaugural do sujeito, por esse pinçamento do sujeito pelo significante, e que marca a sua entrada  na lei do significante, seu fundamento inaugural.

grafo1

Neste grafo estão presentes os dois pontos de entre cruzamento -A- e “-s(A)”-.

A função de “-A”- é ser o tesouro do significante”. O outro ponto de entrecruzamento é o chamado de significante do Outro “-s(A)”-.

A – Outro

s(A) – significante do Outro

2)      Grafo 2:

Constituição do eu

Neste grafo se apresenta pela detenção de um significante -I(A)- a alienação simbólica; e pela fixação de uma imagem -“i(a)”- a alienação imaginária.

 Ou seja, o ego fica estruturado para sempre a partir dessa constituição, o que vale dizer que é pela via identificatória que se constitui.  Neste gráfico é proposta a noção de constituição do imaginário, que se torna o fundamento da constituição do eu.

grafo2

$ – sujeito

i(a) – eu ideal

A – Outro

s(A) – significante do Outro

m –  moi

I(A) – ideal do eu

3)      Grafo 3:

A fundação do desejo

Este grafo tem a forma de um ponto de interrogação. Lacan afirma que é pela via do desejo que o sujeito chegará a este andar superior. O desejo é constituído a partir da demanda do Outro, é da demanda do Outro sobre o sujeito; é, aparecerá na forma de uma interrogação: Que queres?

O que queres, é a pergunta dirigida de A (Outro)  ao sujeito. E é desta forma que Lacan mostra a constituição do desejo como desejo do Outro.

Esta é a via de saída dos ideais identificatórios e Lacan destaca na formula  ($◊a), fórmula da fantasia, o fantasma como resposta do sujeito e suporte do desejo.

grafo3

 Che vuoi – Que queres

d – desejo

 ($◊a) – fórmula da fantasia

 Aprisionada ela está duplamente, como qualquer sujeito que se constitui entanto tal, aos ideais do Outro. De um lado imaginariamente pela fixação de uma imagem de si i(a); e de outro lado simbolicamente a um ideal do eu – I(A)-. Identidade sempre alienante, porque é vinda de Outro. O sujeito estará para sempre afixado a uma imagem, constitutivamente marcado e será necessário, em algum momento, quebrar esse circuito alienante ao Outro.

4)      Grafo 4:

A constituição do psiquismo

O Grafo do Desejo é um recurso gráfico encontrado por Lacan, para mostrar a integração das dimensões que estruturam a subjetividade do humano, o desejo, a linguagem e o inconsciente.

O Grafo do Desejo

grafo4

$ – sujeito

i(a) – eu ideal

A – Outro

d – desejo

($ ◊ D) – fórmula da demanda

S(Ⱥ) – significante da falta do Outro

($◊a) – fórmula da fantasia

s(A) – significante do Outro

m – moi

I(A) – ideal do eu

Para que se quebre o circuito alienador e alienante é necessário que o sujeito se encontre com seu próprio desejo, o que tem uma implicação paradoxal uma vez que desejo é sempre constituído a partir do desejo do Outro. Postulado que desejo é o desejo do Outro, para saber do seu desejo, o sujeito deverá responder à pergunta do Outro, lançada sobre si, que é: O que queres? Tal pergunta deverá ser respondida, com outra pergunta redirecionada ao Outro:

_ O que você (Outro) quer de mim?

O que falta ao sujeito é o objeto de seu desejo que para ele não é apreensível de “per si”, é, no entanto articulável na medida em que pode ser encontrado explorando o desejo do Outro.

Houve o momento em que olhando ela não se viu mais!…Não é possível precisar o exato momento em que sua imagem refletida no espelho não correspondia mais o que ela sempre acreditou ver de si mesma. Ou mesmo, que elemento foi esse que entrou em seu campo de visão e que fez seu olhar invertidamente lhe fazer ver-se tão fantasmagoricamente e monstruosamente esfacelada, como o espelho que ruidosamente se desfaz em pedaços, pedaços que descompõe e deformam a imagem.

Desmantelamento da estrutura egóica, desfazendo seu ponto de fixação, jogando-a no espaço da angústia, porém talvez a única possibilidade de que  possa sair da sua assujeitação ao Outro, na qual se encontra alienada de seu próprio desejo.

A angústia é o que lhe vem em um momento de quebra da imagem corporal e consequentemente de perdas identificatórias. E é a angústia que lhe toma por inteiro, quando se lhe quebra uma imagem corporeamente e tão ilusoriamente concreta de si mesma como inteira, ou de si mesma como única. Aquela que sempre esteve como resposta, oferecida a si mesma como objeto de tamponamento da falta em A (Outro), se tomarmos em conta o desejo familiar. Haverá um momento em que ela deverá se perguntar de si mesma, o que deseja, inquirindo ao Outro, tarefa que deverá ser feita sob a pena de manter-se alunada de si  mesma.

Nossos bebês como todos os humanos nascem em pré maturidade física e psíquica e é o discurso parental e o ambiente familiar que servirá como suporte fundamental para o desenvolvimento da criança e essa será a constituição de sua própria humanidade.

De sua pré- maturidade humana corporal e psíquica o humano vai bordejando pelas etapas primeiras de sua constituição psíquica a partir de identificações, ao acesso de um “eu” constituído imaginariamente a partir do outro; até, o momento inaugural de seu acesso a sua condição de sujeito, a partir do simbólico, no encontro com o Outro (A).

Traços, que me constituem, em que eu sendo tão eu, eu sou tanto mais esse outro, legitimado por esse olhar do Outro que me fundou!

Constituição em que não há independência do sujeito ou confirmação de sua totalidade e, portanto a ilusão de todo ou inteiro é somente isto, uma ilusão!

Desejo que é constituído a partir da demanda do Outro e, portanto meu desejo, não propriamente meu, e que só se me tornará apreensível por inquirir o Outro.

Não houve erros, ou acertos, apenas traços. Traços que se delineiam em quadratura, em que ela foi como humano marcada por um traço unário, marca distinta e constitutiva a partir do seu encontro com o significante promulgado por A (Outro), e que fundaram como sujeito $.

Sujeito que nada mais é, senão subjetivamente, traços ou o traçado de sua trajetória desde o seu encontro fundante com os significantes.

Traçado as avessas que deverá ser seguido como saída da angústia, desde esse ponto ao seu início.

Bibliografia:

Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro, Editora Perspectiva 1966, 3ª edição.

Lacan, J. O estádio do espelho como formador da função do Eu, Rio de Janeiro, Jorge.

Zahar editor, 1949-1998.

http://www.opcaolacaniana.com.br/nranterior/numero6/texto9.html – Nova série

ano II, Novembro 2011, ISSN 2177-2673

 


[1] A – Outro grande também grafado como O

  Lacan, J. (1996) -Outro o lugar do significante – pg.296)

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